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Metodologia

Apresentação

A experiência prática de 20 anos de pesquisas em cadeias produtivas permitiu à Papel Social sistematizar uma metodologia inédita de investigação. O resultado deste esforço foi publicado em 2024 em formato de livro e e-book, intitulado Investigação de cadeias produtivas: Como responsabilizar empresas que se beneficiam de violações de direitos humanos. A intenção é fortalecer a defesa dos direitos coletivos e individuais a partir das operações de fiscalização trabalhista.

O conteúdo a seguir é uma síntese de aspectos centrais do livro, de modo a socializar as reflexões com organizações da sociedade civil, sindicatos, jornalistas e pesquisadores. 

Não há uma única forma de investigar cadeias produtivas. Cada setor possui arranjos específicos, que variam conforme a região. Ano após ano, as corporações renovam suas estratégias para se dissociar de irregularidades praticadas por sua rede de fornecedores, terceirizadas e subcontratadas. 

Frente a esse cenário movediço, a Papel Social aponta um caminho que pode ser adaptado às particularidades de cada pesquisa. A intenção é que diferentes atores se apropriem do tema e, no limite de suas capacidades e atribuições, contribuam para a promoção de condições dignas de trabalho em diferentes setores econômicos.

Acesse a metodologia na íntegra

01

Por que investigar cadeias produtivas

Conheça as razões que tornam o estudo de cadeias indispensável para prevenir violações de direitos humanos e promover o trabalho decente em escala global

A produção global de mercadorias é controlada por um número cada vez menor de empresas. Desde a metade do século XX, elas fragmentam as etapas dos processos produtivos em diferentes países, sem monitorar adequadamente as condições de trabalho.

Além de reduzir custos, essa tendência é usada como pretexto por multinacionais para se dissociar de crimes cometidos ao longo das cadeias produtivas. Desmatamento ilegal, trabalho escravo e infantil são exemplos de violações recorrentes no Brasil, apesar da atuação dos órgãos de fiscalização e repressão.

Para interromper esse círculo vicioso, não basta multar ou punir o empregador direto, que configura um elo frágil da cadeia. É preciso conhecer quem são os agentes de maior poder econômico, que financiam as irregularidades e têm o dever e a capacidade de influenciar boas práticas desde a base.

A investigação de cadeias produtivas é um caminho fundamental para revelar conexões invisíveis à superfície, identificar vulnerabilidades e exigir das corporações medidas concretas para regularização das atividades econômicas.

Criança trabalha na retirada manual das amêndoas do fruto do cacau em Medicilândia (PA). (Foto: Tatiana Cardeal)

Retirada das amêndoas do fruto do cacau ocorre manualmente. (Foto: Tatiana Cardeal)

Após corte e coleta do cacau, trabalhador carrega os frutos em balaio preso às costas. (Foto: Tatiana Cardeal)

Amêndoas de cacau são torradas e moídas antes de chegarem às indústrias chocolateiras. (Foto: Tatiana Cardeal)

A partir do diagnóstico da Papel Social sobre a cadeia produtiva do cacau, o Ministério Público do Trabalho (MPT) ajuizou ações contra as principais indústrias do setor. Em 2023, a multinacional Cargill Agrícola S.A. foi condenada pela primeira vez por permitir trabalho escravo e infantil em propriedades cacauicultoras na Bahia.

02

Como interpretar os fluxogramas

Orientações para analisar graficamente as etapas de uma cadeia, com o objetivo de identificar atores e conexões ocultas.

Fluxogramas são gráficos que representam as etapas consecutivas de uma cadeia produtiva, desde a extração da matéria-prima até o consumidor final.

Sempre que uma mercadoria é transformada ou muda de mãos, forma-se um novo elo na cadeia. Os elos são representados por setas, que conectam uma etapa à outra.

Se as empresas A e B não comercializam entre si, é incorreto conectá-las com uma seta. Neste caso, é preciso identificar quem são os que intermediam a relação.

Mesmo que não promovam nenhum beneficiamento, os atravessadores são peças-chave para revelar problemas estruturais da cadeia.

Fluxograma da produção de café

Produtores de café costumam se organizar em cooperativas, que revendem os grãos para torrefação, moagem e embalagem dentro e fora do país. O Brasil exporta principalmente grãos in natura, destinados a torrefadoras estrangeiras. Grãos de fazendas diferentes se misturam ao serem adquiridos por cooperativas, traders ou torrefadoras. Como os mecanismos de rastreabilidade são frágeis, não há garantia de que o café vendido por grandes marcas esteja livre de violações.

Fluxogramas podem servir para apresentar genericamente o funcionamento de um setor, como no exemplo acima, ou para fins de investigação. Neste último caso, é recomendável identificar e listar os atores que compõem cada etapa (nome dos produtores, atravessadores e grandes compradores) a fim de verificar possíveis cruzamentos (relações comerciais).

Foi o que permitiu à Papel Social mapear, por exemplo, o caminho do pó de carnaúba vendido por produtores autuados por trabalho escravo no Nordeste brasileiro, para fabricação de cera. Entre os compradores, foram identificados gigantes da indústria cosmética como Avon (EUA), Natura (Brasil) e Bozzano (Brasil).

03

Perguntas orientadoras

Sugestão de roteiro investigativo para mapear os atores de uma cadeia produtiva e identificar suas responsabilidades pelas violações identificadas.

O roteiro sugerido a seguir se aplica a investigações que tenham como ponto de partida uma violação de direitos constatada próximo à base de uma cadeia produtiva. A intenção é reconstituir o caminho percorrido pela mercadoria conforme a ordem cronológica dos processos de produção e industrialização, até o consumidor final.

O conjunto de perguntas orientadoras deve nortear a busca por documentos e indícios que permitam identificar os atores de maior poder econômico, com capacidade de influenciar o comportamento dos demais elos e prevenir as irregularidades.

Considerou-se hipoteticamente uma equipe de investigação com pouco ou nenhum conhecimento prévio sobre o funcionamento da cadeia produtiva, de modo a garantir que mesmo as perguntas mais básicas sejam respondidas. Na prática, algumas etapas podem ocorrer em ordem diversa, conforme as especificidades de cada setor econômico e a experiência anterior da equipe.

1. Quais os produtos vendidos ou serviços prestados pela empresa ou fazenda onde ocorreu a infração?

2. Quem adquire diretamente os produtos ou serviços dessa empresa?

3. O infrator ou suposto empregador teria capacidade econômica de assegurar o cumprimento dos direitos trabalhistas?

4. Quais são as empresas líderes do setor e as principais empresas importadoras do produto dentro e fora do Brasil?

5. Quais são os elos intermediários da cadeia e como se relacionam comercialmente?

6. De que formas as empresas líderes dirigem ou estabelecem obrigações ao longo da cadeia?

7. Como a empresa líder monitora possíveis violações em suas cadeias, e por que esses mecanismos não funcionam?

04

Recomendações a agentes públicos

Reflexões sobre a prática, baseadas em entrevistas com auditores-fiscais e procuradores do Trabalho que contribuíram para revelar problemas estruturais em cadeias produtivas

Em um cenário ideal, atividades econômicas que lideram os rankings de trabalhadores resgatados devem ser acompanhadas o ano todo, como parte parte estruturante do trabalho de fiscalização. Esse esforço permitiria mapear as empresas líderes e suas relações com os elos anteriores antes mesmo da recepção das denúncias. Dessa forma, quando a violação fosse identificada, bastaria “ligar os pontos”, permitindo condições mais favoráveis para a responsabilização e prevenção das violações.

A fiscalização in loco é uma oportunidade única para identificação de elos ocultos da cadeia. Durante os dias de operação, é preciso estar com sentidos aguçados: das entrevistas à observação do ambiente, cada detalhe interessa e pode ser crucial para a sequência das investigações.

Embora a função da Auditoria-Fiscal do Trabalho seja autuar o empregador e não os compradores das mercadorias, é aconselhável sugerir a outros órgãos, nos relatórios de fiscalização, que se persiga a responsabilização das a partir dos indícios levantados.

Em alguns estados, os procuradores do Trabalho que participam das operações são orientados a elaborar um relatório próprio, diferente daquele produzido pelos auditores-fiscais. Essa prática é altamente recomendável, uma vez que o MPT não precisa concentrar todas as atenções sobre a relação de emprego, mas a outros aspectos relevantes para a sequência das investigações.

Parcerias com organizações não governamentais, meios de comunicação e outros atores interessados em promover melhores condições de trabalho em cadeias produtivas podem amplificar os resultados das investigação, mas exigem precauções. O Capítulo 7 do livro inclui reflexões sobre o potencial e os limites das cooperações com a sociedade civil para prevenir violações de direitos humanos.

05

Pontos de atenção

Princípios básicos para pesquisadores e organizações que pretendem se dedicar à investigação de cadeias produtivas.

  1. Diante de um flagrante de trabalho escravo ou outras violações associadas a cadeias produtivas, deve-se considerar como hipótese central o envolvimento de uma ou mais empresas que teriam capacidade econômica para monitorar e prevenir as irregularidades.

  2. Retire gradualmente a lupa do agente patológico (infrator direto) e procure enxergá-lo como parte da fisiologia de um sistema. Os players que podem modificar a realidade nem sempre estão próximos geograficamente de onde ocorre a violação de direitos.

  3. Nenhuma cadeia produtiva é igual à outra, mas os resultados de estudos anteriores podem servir como ponto de partida. Em setores econômicos que já foram investigados exaustivamente, conectar as duas pontas (infrator ao consumidor final) pode levar algumas semanas. Se a pesquisa for absolutamente inédita, seu tempo de execução tende a ser mais longo e requer um planejamento mais flexível.

  4. Investigar cadeias produtivas exige criatividade e capacidade de abstração. O processo é comparável à montagem de um quebra-cabeça: as peças existem e formam um conjunto; o desafio é descobrir como encaixá-las. Não há um manual de instruções que se aplique a todos os quebra-cabeças, e dificilmente as peças se encaixarão na primeira tentativa. Cabe lembrar que a falta de transparência entre os elos não é fruto do acaso. Interessa aos agentes de maior poder econômico obstaculizar as investigações e manter suas conexões às sombras.

  5. Nada substitui a apuração in loco. Certas dinâmicas não podem ser apreendidas à distância, e uma conversa informal pode permitir acesso a informações mais relevantes que toda a base de dados disponível na internet.

  6. Não subestime os detalhes. Nem sempre as informações mais valiosas são as menos acessíveis ou mais difíceis de obter. Já houve casos em que o nome da indústria impresso em uma saca de café contribuiu para revelar um elo encoberto por uma fraude fiscal. O mesmo vale para objetos ainda mais triviais, como caneta, calendário ou boné usado pelo trabalhador. Tais peças podem ter sido distribuídas como brinde por outra empresa, durante a entrega de mercadorias, e são um indício de Já houve casos em que o nome da indústria impresso em uma saca de café contribuiu para revelar um elo encoberto por uma fraude fiscal. O mesmo vale para objetos ainda mais triviais, como caneta, calendário ou boné usado pelo trabalhador. Tais peças podem ter sido distribuídas como brinde por outra empresa, durante a entrega de mercadorias, e são um indício de vínculo comercial a ser investigado.

  7. Desconfie de informações fornecidas pelos departamentos de sustentabilidade de grandes empresas que não possam ser checadas ou confrontadas com outra fonte. Raramente uma multinacional disponibilizará sua lista completa de fornecedores diretos e indiretos ou admitirá voluntariamente seu envolvimento em irregularidades.

  8. Identifique as fragilidades das políticas de compra, selos de certificação e demais mecanismos de rastreamento adotados por grandes empresas. Descobrir que determinada multinacional é incapaz de garantir que suas matérias-primas estejam livre de violações é, por si só, uma informação relevante, que pode ser usada em processos de responsabilização visando promover boas práticas.

  9. Mantenha-se atualizado sobre novas plataformas, ferramentas e bancos de dados organizados e disponibilizados por entidades da sociedade civil, dentro e fora do Brasil, que permitam cruzar informações ou avançar na compreensão sobre problemas estruturais em cadeias produtivas.

  10. Conheça exemplos pioneiros de investigação de cadeias produtivas no Brasil, como os da indústria siderúrgica e têxtil. Procure entender quais os caminhos percorridos até a identificação de elos ocultos, que permitiram a responsabilização de grandes empresas. Identifique semelhanças e diferenças em relação à cadeia que você está investigando, adapte a metodologia às suas necessidades e aposte no processo tentativa-erro-acerto.

06

Rotas do Trabalho Escravo

Setores que lideram as estatísticas de resgates de trabalhadores escravizados no Brasil, como café e cana-de-açucar, exploram sistematicamente a mão de obra migrante. Identificar os locais, as dinâmicas de e as rodovias mais utilizadas para é um passo fundamental para prevenir violações de direitos humanos em diferentes cadeias produtivas.

Desde a reforma trabalhista de 2017, a de mão de obra é realizada predominantemente por pequenas empresas terceirizadas, abertas em nomes de ou de seus . Embora seja frequentemente menosprezado, por anteceder a produção das mercadorias em si, este elo também é abrangido pela em direitos humanos.

Todos os atores que lucram com determinado processo produtivo devem monitorar possíveis violações relacionadas ao de trabalhadores, especialmente em setores com prevalência de migrantes temporários – vítimas mais frequentes de condições degradantes, caracterizadas quase sempre por alojamentos precários e incompatíveis com a dignidade humana.

Cada cadeia produtiva possui dinâmicas próprias de arregimentação e migração, muitas das quais já são de conhecimento público. É incoerente, ou até mesmo inconcebível, que grandes empresas aleguem desconhecimento. Multinacionais possuem avançadas estruturas de monitoramento da produção e do fornecimento de matérias-primas, visando ao controle de qualidade e manutenção dos estoques. Essa mesma estrutura, quando aprimorada, pode ser usada para detectar violações de direitos humanos nos processos produtivos. Basta que a garantia de direitos seja incluída, de fato, no planejamento estratégico, dando à vida o mesmo valor que se dá à qualidade das mercadorias.

Na colheita do café, por exemplo, ocorre historicamente um fluxo massivo de trabalhadores da Bahia em direção ao Sul de Minas Gerais, entre março e abril. Já na pecuária bovina no Pará, trabalhadores oriundos de estados como Maranhão e Piauí se deslocam em grupos pequenos, geralmente acompanhados da família, ao longo de todo o ano. Outras cadeias, como a da maçã e a da mandioca, costumam utilizar mão de obra indígena, do Mato Grosso do Sul, além de argentinos, paraguaios e maranhenses. Em oficinas de costura que fornecem para grandes marcas de roupa em São Paulo, frequentemente há trabalhadores e trabalhadoras da Bolívia, do Peru e do Haiti.

Para mapear os fluxos e conhecer em detalhe essas especificidades, é indispensável que agentes públicos entrevistem não apenas os trabalhadores resgatados, mas também os . O mesmo vale para jornalistas e pesquisadores, quando têm a oportunidade de acompanhar operações de fiscalização trabalhista. Cabe observar que o aliciamento, que até a década passada era predominantemente “de porta em porta”, ocorre cada vez mais por telefone e Whatsapp, o que exige um esforço constante de atualização dos métodos de investigação.

A partir de 2022, a Papel Social desenvolveu uma metodologia própria de investigação de rotas, baseada na leitura de relatórios de fiscalização e em pesquisas de campo. Com base no cruzamento dos locais de naturalidade, residência e resgate dos trabalhadores, nossa equipe mapeia e percorre as rodovias mais importantes, subsidiando o trabalho das equipes de fiscalização a partir de dados públicos.

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Cadeia produtiva do café

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Abril, 2024