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Investigação da cadeia produtiva da carnaúba

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Cosméticos, chocolates, chicletes, tintas, baterias, chips de computador, lubrificantes, produtos de limpeza. Todas essas mercadorias podem conter carnaúba, palmeira nativa do Nordeste brasileiro e que não é cultivada em nenhum outro país.

O subproduto mais cobiçado pela indústria é o pó da carnaúba, matéria-prima para diferentes tipos de cera. Na base da cadeia produtiva, são frequentes os resgates de trabalhadores em condições análogas à escravidão.

A Papel Social investigou o caminho percorrido pela carnaúba extraída com trabalho escravo, de municípios pobres do Nordeste brasileiro até indústrias multinacionais.

A carnaúba está presente em um dos medicamentos mais vendidos do mundo, a Aspirina, da fabricante alemã Bayer, nos chocolates da suíça Nestlé e da estadunidense Mondelez, dona das marcas Bis e Bubbaloo nos cosméticos da francesa L’Oreal, entre outras mercadorias comercializadas nos 5 continentes.

A pesquisa foi realizada em parceria com a e o Instituto do Pacto Nacional pela Erradicação do Trabalho Escravo (InPACTO).

Principais regiões produtoras investigadas pela Papel Social

Cosméticos, chocolates, baterias, lubrificantes, produtos de limpeza. Todas essas mercadorias podem conter carnaúba, palmeira nativa do Nordeste brasileiro que não é cultivada em nenhum outro país. O subproduto mais cobiçado pela indústria é o pó da carnaúba, matéria-prima para diferentes tipos de cera. Na base da cadeia, são frequentes os resgates de trabalhadores escravizados.

Conhecida como árvore da vida, devido à diversidade de usos pelo ser humano, a carnaúba é abundante no Piauí e no Ceará e está presente em menor escala no Rio Grande do Norte e no Maranhão. A produção envolve cerca de 200 mil trabalhadores.

O pó de melhor qualidade e mais caro é destinado a indústrias de cosméticos, alimentos, medicamentos e eletrônicos. Por não ter toxicidade, a cera reveste pílulas e comprimidos e também costuma ser aplicada em cascas de frutas, para dar brilho e evitar perda de água. Já o pó mais barato é usado para fabricação de cera automotiva e para polimento de assoalhos e móveis.

Da carnaúba, ainda são extraídos palmito e madeira. Os frutos podem ser transformados em óleo combustível e ração animal. A palha é usada na fabricação de chapéus, bolsas e vassouras, e também serve como adubo.

Fluxograma da produção da carnaúba

A cadeia produtiva começa com a preparação do carnaubal: mapeamento da área, arrendamento, contratação de pessoal e limpeza do terreno. Em seguida, ocorre a extração e batedura da palha, que precede o beneficiamento do pó.

A extração consiste na derrubada, corte dos talos, carregamento e disposição nos locais de secagem. É a etapa em que ocorrem as principais denúncias de trabalho análogo à escravidão.

A batedura é a separação do pó da folha de carnaúba. Pode ser feita manualmente ou com uso de máquina, no próprio carnaubal ou em uma unidade industrial.

Após a retirada, o pó é embalado e transportado para empresas beneficiadoras e refinadoras, onde é transformado em cera e revendido para vários segmentos industriais. A maior parte da produção é exportada.

Empresas envolvidas

A investigação da Papel Social mapeou, em 2016, dezenas de empresas que financiavam direta ou indiretamente o trabalho escravo nos carnaubais.

Entre as beneficiadoras do pó extraído em condições análogas à escravidão, foram identificadas Agrocera Ind. e Com. de Cera Vegetal, Cerapeles Ltda, CVB Ceras Vegetais do Brasil, CVC Ceras Vegetais do Ceará, Ceras Cassemiro, Carnaúba do Brasil, Natural Wax Indústria de Cera, Roguimo, Brasil Ceras Ltda, Foncepi Comercial Exportadora, Pontes Indústria de Ceras e Ceras do Piauí.

Estas vendiam o pó diretamente para indústrias como SC Johnson (Estados Unidos), dona das marcas Raid, Grand Prix e Bravo; e gigantes do setor de cosméticos como Avon (Estados Unidos), Natura (Brasil) e Bozzano (Brasil). Em alguns casos, a exportação era feita através de distribuidoras como Kahl Wax, Ter Hell, C.E. Roeper, De Monchy e Ibercereas.

Das distribuidoras, a cera contaminada com trabalho escravo era adquirida por grandes marcas, como as farmacêuticas Bayer (Alemanha) e Janssen (Estados Unidos); as cosméticas L’Oreal (França), Nívea (Alemanha) e Pantene (de origem suíça, com sede nos Estados Unidos); além de Nestlé (Suíça), Haribo (Alemanha), Mondelez (Estados Unidos) e Mars (Estados Unidos), do setor de alimentos.

Informações-chave

Todos os indivíduos que realizam tarefas braçais nos carnaubais podem estar sujeitos a condições análogas à escravidão. Além do trabalho exaustivo, sem vínculo formal e sem condições mínimas de higiene, equipes de fiscalização frequentemente se deparam com falta de água potável, banheiros e locais adequados para o preparo de alimentos nas frentes de serviço.

Os trabalhadores raramente têm à disposição equipamentos de proteção individual. Portanto, são frequentes as lesões, picadas de animais peçonhentos, casos de mutilação por máquinas, etc.

Os alojamentos são quase sempre precários. Os trabalhadores dormem ao relento ou em dormitórios sujos e apertados, em redes muito próximas umas das outras. Também são comuns os episódios de contaminação de alimentos por insetos e dejetos de pequenos animais.

Os verdadeiros empregadores costumam se apresentar como meros intermediários da cadeia, para escapar de responsabilidades trabalhistas. A gestão dos carnaubais é feita por , sujeitos a ordens estabelecidas desde os superiores da cadeia.

Pequenos produtores, na base da cadeia, não vendem pó diretamente à indústria, porque não possuem estrutura de transporte, armazenamento, ou mesmo acesso ao maquinário. Para isso, dependem de atravessadores, e não têm poder de barganha na negociação de preços.

Os preços abusivos, em muitos casos, inviabilizam a formalização dos trabalhadores e a garantia de direitos na base da cadeia. Famílias carnaubeiras vivem muitas vezes em casas sem banheiros e água potável, na zona rural de municípios com Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) inferior à média nacional.

Entre 2012 e 2023, cerca de 400 trabalhadores foram resgatados em condições análogas à escravidão em carnaubais, a maioria no Piauí e no Ceará. As primeiras autuações miraram pequenos produtores ou atravessadores, subordinados a médias e grandes empresas. Gradualmente, o consolidou o entendimento de que as violações só poderiam ser prevenidas a partir de mudanças no comportamento das indústrias.

A partir de 2016, o MPT firmou com 5 empresas beneficiadoras do Piauí e do Ceará que adquiriam pó de fornecedores flagrados com trabalho escravo. Apenas uma delas, a Foncepi, com sede no Piauí, negou inicialmente as violações. Após ação judicial, a companhia admitiu falhas no monitoramento da cadeia e se comprometeu a enfrentar o problema.

Os principais compromissos assumidos pelas empresas foram o rastreamento anual de 25% dos fornecedores, ao longo de 4 anos, e a disponibilização de um cadastro detalhado, com informações sobre a localização dos carnaubais, o número de trabalhadores e o volume adquirido.

Outras medidas implementadas a partir dos TACs foram cláusulas adicionais nos contratos de fornecimento. Estas incluíam a capacitação dos elos inferiores em direitos humanos, a exigência de assinatura da carteira de trabalho e a criação de canais de denúncias de irregularidades trabalhistas.

Pressionadas, grandes compradoras internacionais criaram o grupo Iniciativa por uma Carnaúba Responsável [Initiative for Responsible Carnauba] e passaram a estabelecer requisitos para seus fornecedores. Para participar do grupo e continuar exportando, as empresas de beneficiamento brasileiras devem celebrar TACs perante o MPT e cumprir as metas acordadas.

Apesar dessas iniciativas, as violações de direitos humanos não foram completamente erradicadas. Em alguns casos, indivíduos contratados por intermediários passaram a se apresentar como agricultores familiares, categoria isenta do monitoramento previsto nos TACs.

Essa manobra já foi detectada pelo MPT, que estuda critérios mais rígidos para assegurar o respeito à dignidade humana em todas as frentes de serviço.

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