No sertão pernambucano, uma camada de pó branco encobre a paisagem e os corpos dos operários. As consequências da produção de gesso à saúde da população local são devastadoras.
Trabalhadores de todas as etapas da cadeia produtiva estão constantemente expostos a poluentes, ruídos, cargas excessivas, temperaturas elevadas e máquinas perigosas.
Um dos materiais mais utilizados na construção civil no mundo, o gesso é produzido em condições degradantes e está comprovadamente associado à contaminação ambiental e humana nos municípios do Sertão do Araripe (PE).
Encobertas pela poeira branca, estão graves violações de direitos humanos, como trabalho escravo e infantil.
Sertão Branco
O Brasil está entre os maiores produtores mundiais de gipsita, minério que dá origem ao gesso. Quase toda gipsita brasileira vem do estado de Pernambuco, seguido em menor escala por Maranhão, Ceará e Tocantins.
As melhores jazidas para aproveitamento econômico estão no Polo Gesseiro do Araripe, composto pelos municípios de Araripina, Trindade, Ipubi, Bodocó e Ouricuri. Além do nível elevado de pureza do minério e das condições propícias à mineração, os municípios pernambucanos têm a seu favor a localização, que facilita o escoamento da produção por meio de rodovias.
A riqueza oriunda do gesso não chega aos moradores do Araripe. Os problemas da cadeia produtiva extrapolam a esfera do trabalho e atingem os indicadores de desenvolvimento humano de toda a região, fragilizada pela vulnerabilidade social e pela falta de políticas públicas.
Mais da metade da população dos cinco municípios do polo gesseiro está em situação de extrema pobreza. A taxa de óbitos e internações por doenças respiratórias é superior às médias estadual e nacional.
Adolescentes não conseguem se manter na escola, devido ao trabalho exaustivo na produção e transporte do gesso. A informalidade predomina no setor, e a renda é quase sempre insuficiente.
Principais regiões produtoras investigadas pela Papel Social
Um dos materiais mais utilizados na construção civil no mundo, o gesso é produzido em condições degradantes e está comprovadamente associado à contaminação ambiental e humana no sertão de Pernambuco. Os problemas extrapolam a esfera trabalhista e atingem os indicadores de desenvolvimento humano de toda a região, fragilizada pela falta de políticas públicas.
A Papel Social constatou diversas irregularidades trabalhistas e violações de direitos fundamentais no Polo Gesseiro do Araripe. Nossa equipe realizou um amplo diagnóstico da cadeia produtiva do gesso, estabeleceu conexões entre os diferentes elos, identificou as condições de trabalho e analisou o contexto social, econômico e fiscal dos cinco municipios.
A pesquisa baseou-se em viagens de campo, revisão bibliográfica, coleta de dados, análise de relatórios de sustentabilidade e mais de 60 entrevistas.
Um mapeamento completo da cadeia foi realizado, com dezenas de empresas identificadas como consumidoras diretas ou indiretas do gesso do Araripe.
O estudo deu origem ao relatório “Cadeia produtiva do Gesso - Avanços e desafios rumo à promoção do trabalho decente: análise situacional”, publicado em agosto de 2021 pela OIT, MPT e Fundação Getúlio Vargas (FGV). O relatório integra o projeto “Promoção e Implementação dos Princípios e Direitos Fundamentais no Trabalho no Brasil”, parceria da OIT com o MPT.
O documentário Sertão Branco (Papel Social, 2018) ilustra os processos produtivos e as condições de trabalho extremamente precárias na base da cadeia do gesso em Pernambuco.
Relatos de trabalho infantil, acidentes graves e enfermidades revelam um cenário de completo desrespeito à legislação trabalhista e aos direitos fundamentais.
Acesse o relatório completo
Fluxograma da produção do gesso
A mineração é a etapa onde se extrai a gipsita bruta do solo, a partir de procedimentos como decapagem, perfuração e detonação. Os trabalhadores realizam a limpeza do terreno, operam máquinas e caminhões, manuseiam marteletes (pequena britadeira) e fazem a detonação com explosivos.
A gipsita in natura pode seguir dois caminhos: abastecer diversos segmentos industriais ou ser destinada a calcinadoras, que a transformam em gesso.
No primeiro caso, os maiores compradores são fabricantes de drywall (sistema de construção a seco) e indústrias agrícola, cimenteira e de construção civil. O gesso agrícola é utilizado em diversas cadeias produtivas para corrigir a acidez do solo.
Nas calcinadoras, o gesso em pó é obtido pela exposição da gipsita ao calor. Atuam nessa etapa calcinadores, forneiros, balanceiros e carregadores. São produzidos o gesso alfa, de maior qualidade e valor agregado, e o gesso beta, que é o mais utilizado na construção civil e dá origem a outros produtos, como gesso cola, gesso projetado e gesso cerâmico.
Os fornos das calcinadoras são alimentados com lenha extraída por trabalhadores florestais, muitas vezes ocultos na cadeia produtiva. A extração de lenha na caatinga também envolve condições absolutamente precárias e trabalho infantil.
Outros insumos utilizados nos processos de obtenção do gesso vêm das indústrias de metalurgia, de equipamentos e manutenção industrial, de embalagens e de aditivos químicos.
O gesso em pó segue, novamente, dois caminhos: para a fabricação de pré-moldados ou para grandes indústrias, como cimenteiras, construção civil, fabricantes de drywall e de produtos odontológicos.
Fabriquetas, também chamadas de plaqueiras ou gangorras, produzem placas, blocos e painéis de gesso. São centenas de empresas desse tipo na região, a maioria de pequeno porte, sob gestão familiar e com alto grau de informalidade. Em algumas delas, o processo é totalmente manual.
Os trabalhadores plaqueiros, principalmente mulheres, fazem uma massa com o gesso, preenchem as formas dos pré-moldados e desenformam os produtos finais, que seguem para comercialização. Em média, cada plaqueiro ou plaqueira produz e carrega duzentas placas de gesso em oito horas de trabalho.
O carregamento e transporte tanto do gesso em pó quanto em placas é realizado por trabalhadores informais, por intermédio de agenciadores que negociam com fábricas e caminhoneiros.
Os carregadores esperam pelos caminhões em postos de gasolina e são contratados de acordo com a demanda do dia. A função é exaustiva e arriscada, mas um valor ínfimo é pago por tonelada.
Quase toda a produção brasileira é consumida no mercado interno.
O gesso produzido com violações de direitos humanos é comprado por construtoras, incorporadoras, prestadoras de serviço de aplicação, armazéns e lojas de materiais de construção.
Informações-chave
O trabalho infantil é uma prática recorrente em todas as etapas da cadeia do gesso. As violações atingem principalmente adolescentes em idade escolar. Muitos trabalham durante a madrugada e têm enorme dificuldade em conciliar os estudos com esforços físicos intensos, cansaço extremo, dores, queimaduras e acidentes. A atividade gesseira consta na Lista das Piores Formas de Trabalho Infantil (Lista TIP).
A precariedade da infraestrutura de trabalho e das condições de saúde e segurança estão entre os principais problemas do setor. Sem equipamentos de proteção individual (EPI) ou roupas adequadas, os trabalhadores são expostos a uma série de riscos. Acidentes graves resultam em lesões, mutilações e mortes. São frequentes as dores na coluna e doenças respiratórias, cardíacas e auditivas.
A produção gesseira é marcada por absoluta informalidade nas relações de trabalho e comerciais. A maior parte das transações não gera notas fiscais. A grande assimetria de poder existente entre as pequenas e médias empresas do Polo do Araripe em relação às empresas líderes do setor agrava o cenário e dificulta o monitoramento da cadeia produtiva.
Mulheres sofrem diversas formas de desigualdade e discriminação de gênero, como disparidade salarial e assédio moral e sexual no ambiente de trabalho. Há ocorrências de exploração sexual de meninas às margens de rodovias e postos de gasolina, onde se concentram caminhoneiros na etapa de distribuição do gesso.
Fraudes tributárias prejudicam a arrecadação dos municípios do Araripe, carentes em investimentos em saúde e educação. A população, majoritariamente rural, tem baixa escolaridade, acesso reduzido à saúde pública e condições inadequadas de saneamento e moradia.
Com base no diagnóstico produzido pela Papel Social, OIT, MPT e FGV elaboraram um Plano de Desenvolvimento Local (PDL) com diretrizes para a promoção do trabalho decente e melhoria das condições de vida na região do Polo do Araripe.
A análise da cadeia do gesso serviu de base para mesas de diálogo com o setor privado, através de parceria com a Rede Brasil do Pacto Global da ONU, e para a cobrança de respostas por parte de governos estaduais e municipais.
Em 2019, foi criado o Grupo de Trabalho (GT) Gesso 2030, no qual entidades públicas e privadas se comprometeram a criar ações e estratégias de enfrentamento aos problemas encontrados e apoiar a consolidação do PDL.
O projeto “Neve no sertão: a experiência do MPT na (re)configuração do ambiente do trabalho do maior polo gesseiro do mundo” conquistou o segundo lugar na categoria Transformação Social do Prêmio CNMP (Conselho Nacional do Ministério Público) em 2019.
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