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Investigação da cadeia produtiva da pecuária

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A pecuária bovina de corte é um dos principais vetores do trabalho análogo à escravidão e do desmatamento ilegal na Amazônia.

Fazendeiros invadem terras públicas e derrubam a vegetação nativa. Madeiras com alto valor comercial são vendidas, e as demais, queimadas para fertilizar o solo. Em seguida, sementes de capim são lançadas sobre a área. Enquanto o pasto cresce, trabalhadores são aliciados para construir cercas e criar animais em condições degradantes e incompatíveis com a dignidade humana.

Este círculo vicioso se mantém há décadas na região, respaldado por grandes compradores internacionais e financiado por bancos públicos e privados.

O Brasil é o maior exportador de carne bovina do mundo e tem o segundo maior rebanho. Quase metade do gado é criado na Amazônia Legal, onde estão sediados 170 frigoríficos.Os maiores importadores de carne bovina brasileira são China, Estados Unidos, União Europeia, Egito e Hong Kong.

A Papel Social investigou em 2022 as intersecções entre trabalho escravo e crimes ambientais em fazendas de pecuária no Pará e no norte de Mato Grosso. O diagnóstico, encomendado pela organização Freedom Fund, apontou a responsabilidade de grandes empresas do setor e os limites dos mecanismos privados de rastreabilidade.

Em 2023 e 2024, em parceria com a Fundação Pan-Americana de Desenvolvimento (PADF), nossa equipe realizou um mapeamento inédito das rotas do trabalho escravo na pecuária bovina no Pará. A investigação baseou-se no cruzamento dos dados de naturalidade, residência e resgate de trabalhadores escravizados, a partir de relatórios de fiscalização do Ministério do Trabalho e Emprego (MTE).

Esse mapeamento permite entender, de forma clara e metodologicamente organizada, as rotas percorridas por vítimas e aliciadores do trabalho escravo.

Principais regiões produtoras investigadas pela Papel Social

O Brasil é o maior exportador de carne bovina do mundo. Quase metade do gado é criado na Amazônia, onde são recorrentes os casos de trabalho análogo à escravidão e desmatamento ilegal. A cadeia é complexa e possui elos invisíveis à superfície. Grandes marcas não monitoram adequadamente os fornecedores indiretos e contribuem para a perpetuação das irregularidades.

As rodovias mais utilizadas para deslocamentos de trabalhadores são BR-155, PA-279 e BR-230 (Transamazônica). Os entroncamentos de rodovias, que configuram pontos prioritários para ações de repressão e prevenção ao no Pará, estão localizados em Xinguara, Marabá e Eldorado dos Carajás.

É comum que trabalhadores da pecuária se desloquem com suas esposas e filhos, que também acabam submetidos a condições degradantes nas fazendas e alojamentos. As mulheres passam a trabalhar como cozinheiras, muitas vezes sem remuneração, e adolescentes assumem tarefas como o corte de capim para preparo de pasto para o gado.

Pontos cegos

Todos os anos, vaqueiros e suas famílias são encontrados em alojamentos precários, sem acesso a água potável e saneamento, expostos a chuvas e animais peçonhentos. Em alguns casos, eles acumulam dívidas com o empregador e se veem impedidos de deixar a propriedade.

Os registros de trabalho análogo à escravidão no setor abrangem todas as etapas, desde a construção dos cercados até a criação e transporte dos animais.

Fluxograma da produção da pecuária

A cadeia é complexa, fragmentada e repleta de pontos cegos.

A primeira etapa é a cria dos animais, que compreende os 6 a 8 meses entre o nascimento e a desmama. Em seguida começa a recria, que dura cerca de 2 anos, até o início da fase reprodutiva. Por fim, ocorre a terminação ou engorda, que precede o abate do gado.

Das fazendas aos frigoríficos, o transporte é feito por caminhões. Após o abate, o que não é aproveitado como carne é separado para descarte ou enviado a curtumes, para fabricação de couro.

No dia seguinte, os músculos são retirados dos ossos, na etapa conhecida como desossa, que antecede o corte e embalo da carne para distribuição.

Apenas fazendas de grande porte, próximas a frigoríficos, conseguem realizar o ciclo completo de cria, recria e engorda. São raros os pecuaristas que criam animais e os comercializam diretamente com abatedouros: a maioria são .

Quando o trânsito de bois entre fazendas ocorre com intuito de ocultar irregularidades, a manobra é chamada de . Nesses casos, pecuaristas responsáveis pela cria, recria ou engorda, condenados ou autuados por violações socioambientais, vendem animais para propriedades ou fazendeiros “ficha limpa”, que por sua vez fornecem para grandes abatedouros.

No Pará, é frequente a presença de um intermediário conhecido como “negociador de gado”. Este geralmente não possui um estabelecimento para criação de animais, mas desenvolve uma estrutura de engorda ou oferece apenas o serviço de transporte. As transações são absolutamente informais e não geram nota fiscal ou qualquer documento que permita identificar o trajeto percorrido pelos bois.

As quatro maiores empresas do setor frigorífico que possuem fornecedores de bovinos na Amazônia Legal são JBS, Marfrig Global Foods, Minerva Foods e Frigol. Por meio delas, a carne brasileira chega a mais de 180 países.

JBS, Marfrig e Minerva são signatárias dos “Critérios Mínimos para Operações com gado e produtos bovinos em escala industrial no bioma amazônico”, compromisso socioambiental firmado junto ao Greenpeace. Porém, nenhuma delas possui mecanismos de rastreabilidade capazes de assegurar que a carne que vendem não é resultado de trabalho escravo ou de crimes ambientais.

O problema central do monitoramento está nos “fornecedores dos fornecedores”, que muitas vezes fraudam ou sequer emitem a Guia de Transporte Animal (GTA), documento obrigatório para atestar o caminho percorrido por um lote de bovinos.

Além de listar pecuaristas autuados por trabalho escravo e desmatamento ilegal que forneceram para grandes frigoríficos, a Papel Social apresentou ao Freedom Fund um conjunto de indícios que conectam as violações a grandes compradores, como os supermercados Walmart e Carrefour e as redes de fast-food Burger King, Subway e McDonald’s.

Informações-chave

Em terras , a primeira utilidade do gado é simular o cumprimento da função social da propriedade (artigo 186 da Constituição Federal). A depender das condições do solo e da capacidade de investimento do fazendeiro, a área pode ser destinada ao cultivo de grãos ou se consolidar como estabelecimento pecuário.

Os municípios com maiores rebanhos do Brasil também estão entre os campeões de desmatamento. O ritmo de devastação cresce em Mato Grosso e no Pará desde 2015, com períodos de maior intensidade, como agosto de 2019. Na ocasião, ocorreu o chamado “Dia do Fogo”, às margens da BR-163: o número de focos de incêndios cresceu 329% em três dias em São Félix do Xingu (PA) e 300% em um dia em Novo Progresso (PA).

A informalidade predomina nas etapas de cria, recria e engorda dos animais. Os empregados quase sempre são aliciados mediante acordos verbais, sem registro no Ministério do Trabalho e Emprego. Esse vínculo frágil é considerado a porta de entrada da escravidão.

A maioria dos flagrantes de trabalho escravo é caracterizado por condições degradantes: colchões inadequados, falta de saneamento básico, dificuldade de acesso à água potável e alimentos e exposição a intempéries climáticas, insetos e animais peçonhentos. Também há casos em que o vaqueiro é impedido de deixar a fazenda por não conseguir pagar transporte de volta, ou por que acumulou dívidas com o empregador para compra de alimentos ou equipamentos de proteção individual.

Como há um trânsito intenso de bois entre fazendas antes da chegada ao abatedouro, multinacionais são incapazes de monitorar os fornecedores indiretos. Apesar dos discursos de sustentabilidade, elas não têm como garantir que seus produtos estão livres de violações socioambientais.

A partir de 2009, o Ministério Público Federal (MPF) e o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) passaram a firmar acordos individuais junto a frigoríficos na Amazônia Legal visando à regularização da cadeia produtiva. O conjunto de acordos ficou conhecido como TAC da Carne – atualmente, Carne Legal.

O objetivo do MPF e do Ibama é que as unidades se comprometam a comprar gado apenas de fazendas sem registro de desmatamento ilegal após 2008. Também são vetadas nos acordos as compras de animais provenientes de terras indígenas e unidades de conservação e de empregadores que constam na .

A plataforma Boi na Linha, desenvolvida pelo Instituto de Manejo e Certificação Florestal e Agrícola (Imaflora) em parceria com o MPF, permite identificar os frigoríficos que assinaram compromissos socioambientais nos estados do Amazonas, Acre, Mato Grosso, Pará e Rondônia.

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