Investigação da cadeia produtiva da moda
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O Brasil é um dos maiores produtores têxteis e de confecção do mundo. No elo mais frágil dessa cadeia produtiva, longe de qualquer glamour, estão trabalhadoras invisíveis, discriminadas, desrespeitadas em seus direitos fundamentais.
A produção não se concentra em grandes fábricas, como no século XX, mas é fragmentada em pequenas oficinas, muitas vezes clandestinas, que migram de bairro em bairro para fugir da fiscalização.
O diagnóstico mais completo das condições de trabalho na cadeia da moda foi realizado pela Papel Social entre janeiro e outubro de 2016. A pesquisa foi financiada pelo Instituto C&A, com foco nas regiões Sul e Sudeste.
As mulheres eram então 80% da mão de obra do setor de confecção. Em alguns casos, a oficina funcionava no local de moradia.
Máquinas de costura espalham-se por todos os cômodos, comprometendo a intimidade e expondo os filhos a um ambiente degradante e insalubre. Para contribuir na renda familiar, é comum que crianças e adolescentes contribuam nas tarefas de costura.
Nossa equipe percorreu mais de 20 mil km, conversou com trabalhadoras e trabalhadores, empresários, juízes e procuradores do Trabalho. Também foram entrevistados intermediários, que levavam e traziam roupas para serem confeccionadas por grandes empresas, ocultas em redes de terceirização e quarteirização.
Em diversas oficinas de costura, foram constatadas jornadas exaustivas e condições degradantes, que configuram trabalho análogo à escravidão.
Além da complexa realidade das periferias e da região metropolitana de São Paulo (SP), o estudo abrangeu os polos calçadistas de Franca (SP), Novo Hamburgo e Vale dos Sinos (RS), o polo de moda íntima de Nova Friburgo (RJ) e de confecções em Santa Catarina, Paraná, Minas Gerais e Rio de Janeiro.
A equipe de pesquisa visitou ainda o principal ponto de imigração terrestre da Bolívia ao Brasil, para mostrar a dinâmica de aliciamento e tráfico humano para o setor de confecções em São Paulo.
Condições de Trabalho na Cadeia Produtiva da Moda – Regiões Sul e Sudeste (2017)
A íntegra do estudo não está disponível para leitura ou download, conforme cláusula de contrato com a entidade parceira.
Principais regiões produtoras investigadas pela Papel Social
O Brasil é um dos maiores produtores têxteis e de confecção do mundo. No elo mais frágil desta cadeia estão trabalhadoras invisíveis, desrespeitadas em seus direitos fundamentais. A produção, que abastece grandes marcas, é fragmentada em milhares de oficinas, muitas vezes clandestinas. São recorrentes os flagrantes de jornadas exaustivas e condições degradantes, que configuram trabalho escravo.
Oficinas de costura que não possuem marca própria e prestam serviço exclusivamente a outras empresas são chamadas de facções. Nesses locais, foram constatadas jornadas de até 16 horas, 7 dias por semana, com pagamentos mensais inferiores a meio salário mínimo.
O principal vetor do trabalho escravo no setor é a informalidade, estimada à época em 50% dos trabalhadores. Sem contratos de trabalho, milhares de costureiras eram impedidas de acessar políticas públicas e benefícios previdenciários, como auxílio-doença e aposentadoria.
O período do estudo caracterizava-se por intensa migração de grandes marcas das regiões Sul e Sudeste para o Nordeste do Brasil, em busca de mão de obra ainda mais barata.
O setor de vestuário também se mostrou vulnerável ao trabalho infantil, com maior preponderância na fabricação de bijuterias em cidades como Limeira (SP).
Fluxograma da produção da moda
Informações-chave
Quase 1 milhão de trabalhadoras estavam em situação de vulnerabilidade social à época da pesquisa.
O trabalho escravo era caracterizado, quase sempre, por jornadas exaustivas e condições degradantes. Também foram constatados casos de servidão por dívida.
Costureiras recebiam um percentual ínfimo do valor final das peças. O pagamento, conforme a produção, as obrigava a trabalhar até 16 horas por dia para garantir o sustento da família.
Além de trabalho escravo e infantil, são frequentes os casos de violência de gênero, assédio moral e sexual no setor. Bairros com oficinas clandestinas também costumam ter incidência mais alta de doenças graves, como a tuberculose.
Para ampliar seus lucros e ocultar participação nas irregularidades, grandes marcas de roupas utilizam "laranjas". Estes se apresentam como empregadores ou donos de oficinas, mas na prática respondem a ordens dos elos de maior poder na cadeia produtiva.
Em novembro de 2017, a grife Zara Brasil LTDA foi considerada pelo Tribunal Regional do Trabalho da 2ª Região (TRT-2) responsável por casos de trabalho análogo à escravidão em sua cadeia de fornecimento.
Segundo o acórdão, a marca de origem espanhola adotou uma postura de “cegueira conveniente” diante das péssimas condições de trabalho nas oficinas, a fim de obter um produto com “baixíssimos custos, que somente poderiam ser obtidos de forma ilegal”.
Um dos indícios mencionados pelo TRT-2 era que uma das empresas intermediárias, a Aha Indústria e Comércio, sequer tinha máquinas de costura em suas instalações. Na interpretação do desembargador, a Aha servia apenas para ocultar o envolvimento da Zara com as violações.
As inspeções nas oficinas que forneciam para a Zara se deram no âmbito do Programa de Erradicação do Trabalho Escravo Urbano da Superintendência Regional do Trabalho do Estado de São Paulo (SRTE-SP), que passou a rastrear o as mercadorias a partir da criação do “Pacto Contra a Precarização e Pelo Emprego e Trabalho Decentes em São Paulo: Cadeia Produtiva das Confecções”.
Graças a esse esforço conjunto, constatou-se que oficinas de confecção em São Paulo estavam repletas de trabalhadoras submetidas a servidão por dívida, condições degradantes e jornada exaustiva. O fato de que muitas eram imigrantes bolivianas e peruanas sem a devida documentação para permanência no país as tornava um alvo preferencial, porque coibia as denúncias.
Entre 2010 e 2018, investigações semelhantes permitiram que 37 marcas do setor fossem flagradas submetendo trabalhadores a condições análogas à de escravo. A maioria das vítimas residiam nas próprias oficinas, sem condições adequadas de higiene, e recebiam pagamentos insignificantes por peça produzida – incompatíveis com o preço final das peças no varejo. Outras empresas flagradas, como Marisa, Collins, Le Lis Blanc e Renner, também fizeram acordos e assumiram compromissos para que o processo judicial não se estendesse.
Em reação às pressões dos consumidores, diversas grifes assumiram a responsabilidade de monitorar suas cadeias produtivas, enfrentar o trabalho escravo, a violência contra a mulher, o trabalho infantil e demais irregularidades. Parte delas assinaram o Pacto Nacional pela Erradicação do Trabalho Escravo.
Apesar dos avanços, um número substancial de empresas ainda trabalha à margem da legislação, violando os direitos humanos, sonegando impostos e contrabandeando trabalhadores imigrantes para oficinas em condições incompatíveis com a dignidade humana.